28 de novembro de 2007

Venezuela - mais do mesmo ou uma nova oportunidade?

Texto de Helena Henriques




A Ana Rita e o Filipe desafiaram-me a escrever sobre Hugo Chávez e a Venezuela.


Estou renitente, é que no próximo domingo terá lugar a ruptura constitucional planeada pelo Presidente Chávez e é doloroso ver os vários apelos (de estrangeiros e de corajosos venezuelanos, porque não duvido que o contexto que vive a Venezuela torna eventualmente perigoso discordar do poder) aos venezuelanos para que acorram às urnas e votem em consciência - avaliando o que realmente está em causa e não a actuação do governo venezuelano, que é como quem diz, podem ser a favor de Hugo Chávez e discordar desta proposta colocada a referendo e que em bom rigor deveria ser discutida e votada por uma assembleia constituinte eleita democraticamente para o efeito - e não referendada no meio de simpáticas jornadas de seis horas de trabalho cuja viabilidade sequer se conhece.


É aflitivo ver que um país endossa a liberdade e o pluralismo desta maneira, que um país ignorou durante anos as mais prementes realidades sociais - sim porque alegremente se chegou ao ponto de ter 37,9% da sua população abaixo dos níveis de pobreza (números disponíveis no CIA world factbook, há quem fale mesmo de 50%) - mas há ricos, muito ricos e curiosamente, em Caracas apraz-lhes viver nas belas colinas, em condomínios fechados e guardados por forças para-militarizadas, até porque na colina vizinha estão os "cerros", os bairros de lata dos excluídos, a franja da população que apoia Chávez porque, até hoje, mais nenhum governante conseguiu chegar até eles, fazê-los sentir-se cidadãos.


Mais doloroso ainda é ver como a classe média e média baixa se sentem ameaçadas por tudo isto - o terror que sentem de ver o seu país transformado numa nova Cuba, uma Cuba de miséria e de pensamento único. Dói ver a sua incapacidade de entender que anos a ignorar e excluir outros cidadãos só podiam criar o conflito. Dói não vislumbrar a pacificação social, temer uma guerra civil.


E sobretudo custa ver a América Latina assim, aquele curioso novo mundo em que os imigrantes foram substituir a mão de obra escrava, e que talvez por isso, gera sociedades multirraciais em que a cor importa muito menos, em que as várias comunidades imigrantes se diluem numa sociedade alegre e quente que pouco tem a ver com os ascendentes europeus ou asiáticos e que podia muito bem ser a esperança de um novo modelo que substitua o esclerosado conservadorismo europeu - que apesar dos direitos humanos, ou da fórmula americana dos civil rights, saindo do formalismo dos direitos (e que já é alguma coisa, sem dúvida) tem muita dificuldade em ver o outro como seu igual, como alguém que convida para jantar em sua casa ou para partilhar umas férias, tem dificuldade em não achar que os seus séculos de história e tradição não lhe dão uma superioridade civilizacional sobre os outros - quando devia encarar a possibilidade de ser esse mesmo o seu ponto fraco, ou de olhar para si mesma e perceber que precisa desesperadamente de gente, sim, essa que pode vir de África, América e Ásia e sem a qual cairá de velha. De alguma forma é uma certa demonstração disto mesmo o que incomoda na gaffe do rei de Espanha na Cimeira Ibero-Americana.


Mas voltando ao assunto, uma coisa parece certa, ninguém fez tanto pelos excluídos venezuelanos como Chávez, e isso é alguma coisa de importante, pode ser um princípio para finalmente tirar desta encruzilhada um país riquíssimo em gente e recursos naturais, importante será não criar os novos excluídos ou entrar em aventuras irresponsáveis, neste ponto talvez Lula tenha um papel decisivo e... esqueçamos a Europa.




Texto de Helena Henriques

6 comentários:

Ant.º das Neves Castanho disse...

No fundo, a verdadeira questão é esta: o mais nos dói na consciência, a falta de Liberdade, ou a falta de Igualdade?


Posta de outra maneira, qual das duas, Democracia ou Justiça, pesa mais na nossa balança MORAL?...


Eis o resultado da imperfeição do Homem: concluir que da Liberdade não brota naturalmente a Igualdade, ou que a prática da Democracia não conduz necesariamente à Justiça.


Já tínhamos encaixado as verdades opostas do Séc. XX, que a sede de Justiça pode negar-nos a Democracia, ou que a busca da Igualdade nos pode custar a Liberdade.


Agora temos o reverso desta medalha erigidos no grande tema de debate político-ideológico para este novo Século...

Helena Henriques disse...

Igualdade, bom, diferenças sempre haverá, mas parece-me que só podemos ter uma sociedade pluralista se assentarmos que todos os seus membros devem ter acesso a uma vida digna - medível pelos direitos humanos. Parece-me provado que alienar a liberdade e o pluralismo só traz infelicidade, repressão e talvez um nivelamento igualitário - por baixo... E lá se vão direitos humanos, a preciosa liberdade. Acho que se assentarmos numa visão de sociedade em que os direitos humanos são bens inalienáveis, temos um princípio.
De qualquer forma a.castanho, foi tocar precisamente no defeito do texto, cujo final dá a ideia errada de eu acreditar na legitimidade de um dirigente colocar ao seu povo a possibilidade de legitimar a sua posição totalitária - que eu espero, sinceramente que o povo não permita.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Cara Helena Henriques,


não pretendi apontar qualquer "defeito" ao seu texto, apenas dei a minha opinião sobre o tema, que considero muito interessante.


Para além do caso concreto da Venezuela, que também espero não se transforme numa "Ditadura das boas causas", que simplesmente não existem, preocupa-me a questão mais geral da oposição entre, por um lado, a pureza dos conceitos abstractos, sempre elevados mas nem por isso, tantas vezes, menos cínicos, e a realidade das imperfeitas construções humanas, tantas vezes falhadas, apesar de generosas.


Comparem-se, por exemplo, a pobreza (material, mas não espiritual) orgulhosa e digna de Cuba, com a indigência miserável (material e espiritual) e a vileza do Haiti, Países onde o cariz ditatorial ou despótico dos respectivos Governos é o que menos explica estas diferenças...


Como diz a minha Empregada ucraniana, dantes na Ucrânia não havia nada nas lojas para comprar, mas não faltava o dinheiro. Agora as lojas têm de tudo, mas é tão caro que ninguém pode comprar nada!


Penso que, para esta Mulher simples, a Liberdade e a Democracia pouco ou nada adiantam às diferenças que sente do ontem para o hoje...

Helena Henriques disse...

Quando digo que toca no defeito do texto pretendia fazer um elogio ao seu comentário, que por ser acutilante rapidamente foi tocar na contradição que entendo existir no texto.
Acho que a resposta continua a ser a inviolabilidade dos direitos humanos, e a coisa vai mal, porque cada vez mais vejo dar de barato os direitos económicos, sociais e culturais como secundários...

Anónimo disse...

Manuel Sando diz:

Os lamentos , mesmo inteligentes , não resolvem os problemas. De facto, se os poderes políticos conservadores e liberais não resolverem os problemas dos de "baixo" (E dificilmente os resolverão, porque nem os consideram como tais); se não houver uma esquerda as que podem governar que saiba conduzir equilibradamente a transição de uma gritante desigualdade para uma maior igualdade -- o caminho fica aberto para as soluções imperfeitas. Soluções decerto pouco equilibradas dos que respiram finalmente como seres humanos num mundo que os reduzia à miséria extrema. Se tudo falhar, podem crer que os de "baixo" não vão esvair-se pacificamente para que os de cima vivam "democraticamente" nos seus "paraisos".
Por isso, se as alegadas imperfeições de Chavez são seguramente suas, não é possível esquecer a cumplicidade dos democratas -cristãos e dos sociais-democratas filiados na Innternacional Socialista, que se sucederam no poder democrático sem qualquer êxito no combate á miséria dos que apoiam o actual Presidente.
Não esqueçamos, na verdade, que a ascensão de Chavez se iniciou quando a população pobre, cansada de miséria num momento de crise, veio para as ruas em motins incontroláveis que fizeram implodir a legitimidade dos partidos políticos clássicos.

Helena Henriques disse...

Claro, aliás a oposição a Chávez peca por não ser credível, COPEI e AD mais valia fecharem, liquidarem, qualquer coisa. São os culpados desta situação, sem dúvida. E afinal o povo disse não :)