O DN de sábado apresentava um artigo de título "Tratado Reformador ilegível para os cidadãos". O conteúdo não está mau, explica até algumas das alterações introduzidas relativamente ao primeiro projecto, agora morto e enterrado. Mas não deixa de dizer que se trata de um "texto quase ilegível para leigos", de um "texto jurídico muito complexo, de leitura apenas possível para especialistas". Ora, eu não sou jurista, nem sou especialista em questões europeias e, como tal, não concordo com a afirmação!
Mas isto não é o mais importante. O cerne da questão está no facto de este tipo de afirmações, nos media, dar força à ideia de que não se deve submeter o Tratado a referendo, precisamente por não ser passível de compreensão por parte dos cidadãos, dar força à ideia de que só as elites decisoras foram bafejadas com o privilégio de decifrar esta linguagem hermética, logo, só elas poderão saber se o Tratado é bom ou mau, se deve ser ratificado ou chumbado.
Mesmo que só as cúpulas da União compreendessem o conteúdo do Tratado através da sua simples leitura - o que não é verdade -, isso nunca poderia significar que só eles poderiam tomar a decisão de aceitar ou não um documento tão importante para o futuro de todos. Vital Moreira, por exemplo, esquece isso, ao considerar que a ilegibilidade do Tratado é argumento para que este não seja referendado... Este argumento é perigoso. E, antes disso, é falacioso.
Uma das mais importantes funções dos partidos é a da mediação. Actualmente, pensamos apenas na agregação de interesses ou na ocupação do poder, mas a verdade é que os partidos existem também para fazer a mediação entre os cidadãos e os centros do poder público. São os partidos quem deve "tomar o pulso" aos eleitores, de forma a perceberem as suas sensibilidades, da mesma forma que são os partidos quem deve explicar a estes eleitores as propostas e as medidas tomadas pelo poder político. Melhor ou pior, é a isto que assitimos durante as campanhas eleitorais. E seria isto que poderíamos esperar de uma campanha que antecedesse um referendo sobre o Tratado da UE.
É óbvio que nem toda a gente compreende o Tratado. Da mesma forma que nem toda a gente compreende por que razão se sobem ou baixam os impostos, ou o que significa "apostar na inovação"... Cabe aos partidos explicar à população os pontos positivos ou os pontos negativos do Tratado, de forma a que cada eleitor forme a sua opinião! Tal como acontece em qualquer eleição. Alguém acredita que a maioria da população leia as propostas eleitorais dos vários partidos que se apresentam a eleições? Claro que não! O cidadão comum vai tomando conhecimento (sempre parcelar, obviamente) do que cada partido propõe durante a campanha e depois... depois, vota. Ponto. E, felizmente, o voto de quem tem apenas uma ideia vaga sobre o que os partidos defendem é tão válido como o das elites, que se debruçaram a fundo nas várias questões.
E isto leva-nos a perceber porque é que o argumento usado por Vital Moreira é perigoso: porque, mesmo não sendo essa a sua intenção, abre caminho à ideia de que apenas alguns estão ao nível necessário para participar na vida democrática. Neste caso concreto, nível intelectual: só quem compreende, à partida, o texto do Tratado poderia pronunciar-se sobre ele; como a maioria não o compreende, deixemos isso aos governantes. Erro!
Felizmente, o voto capacitário (que poderia dizer respeito à capacidade intelectual, mas também à capacidade financeira) foi abolido há imenso tempo, no nosso país. Portugal, nesse aspecto, foi até pioneiro, alargando, muitas vezes, o seu corpo eleitoral a faixas da população (nomeadamente, analfabetos e não detentores de bens) excluídas do voto em países apontados como exemplo em termos de democraticidade, como é o caso da Inglaterra.
Hoje, a nossa democracia, que se diz "madura", precisa de tudo menos da defesa de uma ideia que desvirtua o próprio regime. Defender que a aprovação do Tratado não deve passar pelo povo, porque este é ignorante, equivale a contrariar a ideia mais profunda de democracia. A ideia de que o poder reside no povo.
Todos sabemos que o Tratado só não vai ser referendado porque os governantes europeus, em geral, e os portugueses, em particular, têm medo do resultado. Têm medo que o povo o rejeite, como já aconteceu em França e na Holanda, com o anterior projecto. Não o podendo assumir, há que encontrar argumentos que consolidem a oposição ao referendo. A isto chama-se atirar areia para os olhos... Mas mesmo que se esteja contra o referendo, é melhor não utilizar argumentos que podem reabrir caminhos que levaram séculos a fechar.
8 de outubro de 2007
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5 comentários:
Este cozinhado eurocrático serve para ultrapassar o fracasso da constituição europeia rejeitada pelos votantes da Holanda e da França.Sócrates prometeu o referendo mas agora é ele quem lidera a aprovação deste Tratado Reformador à revelia da opinião dos cidadãos europeus. Para este tipo de 'democratas' a vontade da maioria, quando lhes é contrária, não interessa para nada. Quando é estará disponível informação que, com verdade, faça entender as reais implicações do Tratado? Pagar-se-ão mais impostos? Irá haver uma política externa e de defesa comuns? Um exército europeu? Caminha-se para uma Federação? As perguntas são muitas e a informação escassa. O que fazem os partidos para informar? Muito pouco ou nada, que eu saiba. Depois admiram-se dos cidadãos andarem alheios à problemática europeia...
Muito bem, muito bem!!! Excelente post.
Tenho gostado bué de todos os posts da Ana Rita.
Luís Lavoura
Fiquei apopléctico quando o Sérgio Sousa Pinto afirmou que as questões importantes não se referendavam. Eu não sei se eles se apercebem da tremenda arrogância e perigosidade do argumento que usam.
E digo perigosidade não apenas pelo desrespeito que denota face aos cidadãos e pela desconsideração face à democracia, como também pelas suas implicações na relação (já problemática) dos cidadãos face à UE.
Aproveito entretanto para fazer campanha:
https://www.europeanreferendum.eu/pt/inicio.html?no_cache=1
Sou a favor do referendo ao Tratado, independentemente do nome qulhe darão. Mas já o tentei ler e é, de facto, ilegível, pois remete para artigos anteriores, refere alterações a artigos que não estão completos, enfim, um horror. A impressão que dá é qe é mesmo propositado. Acho que quem fez o artigo no DN tem razão. O tratado é mesmo ilegível. (http://www.consilium.europa.eu/cms3_fo/showPage.asp?id=1317&lang=pt&mode=g)
até a esquerda que, ainda, não teve tempo de educar "todo" o povo tem medo de referendos... ou há uma determinada esquerda que, por agora, até gostará deles porque sonha acreditar num possível resultado...
A política é muito gira, sobretudo a nossa...
Mas isto não é mais que um pequeno olá à Ana Rita de um tipo de direita que ficou órfão há poucos dias...
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