15 de novembro de 2007

Partidos desideologizados, pragmáticos, mercantilizados

Há uns dias, o Filipe lançou-me um repto: desenvolver o tema das mudanças ao nível partidário causadas pelas mudanças ao nível das identidades sociais. Vamos, então, a isso!

Na transição das sociedades industriais para as sociedades pós-industriais (como a nossa), houve, de facto, uma alteração na construção das identidades sociais dos indivíduos.
Se, nas primeiras – sociedades de produção por excelência –, as identidades sociais mais não eram do que identidades de pertença, isto é, identidades dadas pelos grupos a que se pertencia, nas segundas – que são já sociedades de consumo –, as identidades são formadas por referência, nomeadamente através de referências consumistas (daí a importância das marcas e da publicidade, como referia o Filipe).
Construirmos a nossa identidade por pertença significava, assim, que cada um se definia pela classe a que pertencia, dado que o grande conflito social era – Marx acertou! – o conflito de classes.
Isto acarretava, como consequência prática, o facto de haver uma enorme correspondência entre clivagens sociais e clivagens políticas. Nas sociedades industriais, quase se podia saber em quem alguém votava, sabendo apenas em que classe social se inseria. Neste sentido, Gramsci dizia mesmo que os partidos eram os nomes políticos das classes sociais e Seymour Lipset falava das eleições como luta de classes democrática.
Este modelo era verdadeiro: os partidos da época organizavam-se de facto em função das clivagens sociais, fazendo, cada um deles, corresponder um modelo ideológico a cada sector da sociedade.
Os partidos conservadores e de direita baseavam-se sobretudo nas classes superiores, os partidos progressistas e de esquerda baseavam-se nas classes inferiores, os partidos centristas baseavam-se nas classes médias; havia uma sobreposição da religião com a direita e da secularização com a esquerda; mulheres, idosos e populações rurais tendiam a ser mais conservadores, enquanto que homens, jovens e populações urbanas tinham mais espaço entre os progressistas [Lipset, The Political Man]. A pertença ao grupo repercutia-se efectivamente no comportamento político.

Actualmente, porém, isto já não acontece de forma tão pura e perfeita: o conflito social pulverizou-se em múltiplos conflitos, tornando-se, por isso, menos identificável, o que quer dizer que a determinação social do voto diminui.
Hoje, já não nos definimos tanto pela classe a que pertencemos, em grande parte devido ao facto da mobilidade social (e cultural) ser muito superior à das sociedades industriais, mas também porque os meios de comunicação assumem um papel incomensurável na formação das identidades, logo, também na formação do sentido do voto. Voto que se torna, assim, muito mais volátil.
Perante esta quebra das influências sociais e consequente aumento da flexibilidade eleitoral, os partidos mantiveram-se onde estavam? Claro que não! Passaram antes a agregar indivíduos de várias classes, tornaram-se mistos e heterogéneos.
Desde a Segunda Guerra Mundial que os partidos de integração e de representação vão dando lugar aos catch all parties, partidos onde vigora o imediatismo pré-eleitoral, partidos mais de eleitores do que de militantes, partidos sem classe gardée, isto é, partidos que não têm um sector do eleitorado guardado para si, precisamente porque a fidelidade partidária diminuiu exponencialmente.

É isto, então, o que temos hoje: partidos onde a ideologia perdeu fortemente terreno, partidos pragmáticos e sem grandes horizontes históricos, partidos mercantilizados, que se assumem, cada vez mais, como empresas que oferecem produtos aos seus consumidores.

4 comentários:

Ant.º das Neves Castanho disse...

Interessante, sem dúvida!


A Democracia e o Mercado, juntos na Europa por muitas décadas, ininterruptamente, permitiram que a luta pelos interesses e o combate pelos princípios tenha lugar em palcos distintos, isto é, simplificando, um pobre pode agora ser "de Direita" e um rico "de Esquerda"!


Esta é talvez a grande evolução política e civilizacional que, no Ocidente, o Século XX permitiu a partir do pós-guerra. Só que, aparentemente, ainda muito pouca gente deu por isso...

Helena Henriques disse...

Suponho que toda a gente ambicione um partido Armani - não consigo imaginar o apelo de um partido loja do chinês.

Bom post. O conservadorismo, era uma forma de defender o privilégio, a classe privilegiada luta para guardar para si os privilégios que tem (ligados segundo Marx, à propriedade dos meios de produção), enquanto as outras classes lutam por aceder a esses privilégios ou pelo menos conseguir melhores níveis de vida, e o sistema continua a sua saga evolutiva. E evoliu de uma forma incrivelmente subtil, assim quando a propriedade de meios de produção se torna demasiado pesada, surge a economia dos managers (ainda uma perspectiva marxista e que me parece acertar na mosca)- passando de propriedade a controlo. Mais vão-se criando válvulas de escape social que ajudam à estabilidade e paz - qualquer pai de parcos recursos, ambiciona que o filho seja jogador de futebol ou talvez cirurgião. O sistema cria a ideia de democraticidade - qualquer um pode ter uma vida Hollywoodesca. Isto começa a não funcionar, porque a pressão no dito 3º Mundo é demasiado grande, mas recorrer a quê? As ideologias estão desmaiadas, os partidos são como hipermercados ou outlets - daí os aparentemente extemporâneos Chávez, vende uma vida melhor numa sociedade com cerca de 50% de excluidos.

Anónimo disse...

Percebo e concordo perfeitamente com a critica feita. Critica porque na política, a economia é um dos aspectos que deve ser tomado em consideração, mas não é o mais importante ou não deve ser.

Pensar num partido politico como um produto que deve ser impingido ao consumidor, utilizando para isso propaganda façil, é algo que deveria ser reconsiderado e reequilibrado sob o risco de os cidadãos perderem cada vez mais, confiança na democracia...

Resumindo e complicando, com partidos equivalentes a produtos para consumo, onde vai parar o Sistema Democrático? E se mais uma vez este falir?

Estou para ver quando é que alguém se lembra de dizer que o Homem não foi feito para viver em democracia.

Os partidos reflectem a população, e dado que o desinteresse desta na vida e na participação politica tem vindo a aumentar, já não me parece que falte muito para aparecer um iluminado que vai resolver todos os problemas de todos os portugueses mas que para isso tem que destruir os maus vicios da democracia...

É assim que as coisas começam..quando um sistema começa a demonstrar sinais de fraqueza, é deixa para outros, que estiveram muito sossegados na sombra, começarem a intrevir..

Eu estou à espera do meu momento :)

Anónimo disse...

Não posso deixar passar a oportunidade de dizer à a.castanho que eu também já tinha dado por isso! Somos poucos infelizmente!Todavia como diz o pedro gh: "já não me parece que falte muito para aparecer um iluminado que vai resolver todos os problemas de todos os portugueses mas que para isso tem que destruir os maus vicios da democracia..." a verdade é que eles têm andado a perfilar-se, vamos lá ver se chumbam no "teste" senão ..... a profecia
tem lugar.Horrivel não é! Só que toca sempre aos outros e nós?